Receita Federal acusa Globo de 'associação criminosa' com artistas

Fonte: UOL
Em um novo capítulo de uma ofensiva contra 43 artistas que mantiveram
vínculos como PJ (pessoa jurídica) com a Globo nos últimos anos, a Receita
Federal começou a disparar as primeiras autuações fiscais contra atores e
atrizes que pertencem ao alto escalão da emissora. Nos documentos, o
órgão do governo federal aponta um suposto conluio entre os artistas e
insinua existir uma "associação criminosa" nos acordos.
Até o momento, 12 autuações foram disparadas. Em audiências, a Receita
informou que as multas serão encaminhadas de maneira faseada e que
todos os 43 artistas serão notificados. A Globo é apontada "como
solidariamente responsável pelo pagamento da autuação", o que significa
que a cobrança pode ser feita para os artistas ou para a empresa.
"A primeira autuação é composta de 65 páginas escritas pelo fisco a fim de
imputar a prática de crime contra a ordem tributária praticado pela
emissora em conluio com o ator, o que não faz o menor sentido", ressalta
ao Notícias da TV o advogado tributarista Leonardo Antonelli.
É ele quem representa os contratados da emissora nessa disputa que visa
condenar a "pejotização", relação de trabalho que o próprio órgão do
governo federal reconhece como "comum". Pela lei brasileira, "os serviços
intelectuais, de natureza artística ou cultural, em caráter personalíssimo,
sujeitam-se ao regime de tributação de pessoas jurídicas".
A defesa dos artistas entrou com um recurso administrativo na própria
Receita Federal. Durante esse processo, não existe a necessidade do
pagamento das multas aplicadas. Em alguns casos, os valores ultrapassam
R$ 10 milhões.
"Depois de encerrada a via administrativa, o contribuinte pode ingressar
em juízo. Como as decisões da Receita são contrárias, estamos ingressando
paralelamente em juízo e confiantes de que o Poder Judiciário irá, ao final,
reconhecer que essa diferença não é devida e que o uso de pessoa jurídica
(pejotização) está previsto em lei e é lícito", explica o tributarista.
O advogado diz que um dos atores autuados embolsou a quantia de R$ 1
milhão da Globo em 2016, por participação em uma novela, programas da
emissora e direitos conexos, que são os valores recebidos por obras
audiovisuais reprisadas ou exibidas no exterior.
"À época, ele ofereceu todo esse R$ 1 milhão à tributação da sua pessoa
jurídica, recolhendo 20% (à título de Imposto de Renda Pessoa Jurídica,
Contribuição Social Sobre o Lucro, PIS, Cofins e Imposto Sobre Serviço). Ou
seja, pagou R$ 200 mil de tributos e distribuiu para si a diferença (R$ 800
mil) de lucros", diz o tributarista.
Na autuação, a Receita Federal aplicou uma cobrança de R$ 275 mil, que
representa 27,5% de Imposto de Renda sobre o total de seus rendimentos.
Ainda foi acrescida uma multa de 150% em cima desse valor e uma
atualização monetária do imposto pela Selic, que no período corresponde
a um acréscimo de 44%.
"Conclusão: o ator recebeu uma cobrança de R$ 808,5 mil (imposto + multa
+ juros). Considerando que ele já havia pago na sua pessoa jurídica R$ 200
mil de tributos sobre as suas receitas, verifica-se que ele está sendo
cobrado hoje um valor global (tributário) maior do que o recebido: R$
1.008.500,00", enumera Leonardo Antonelli.
A defesa mantém sob sigilo os nomes de quem já recebeu as notificações
de pagamento, mas na lista de investigados estão celebridades como
Deborah Secco, Reynaldo Gianecchini, Malvino Salvador e Maria Fernanda
Cândido.
Guerra da Receita contra a Globo
A Receita Federal é um órgão ligado ao governo de Jair Bolsonaro. O
presidente já manifestou diversas vezes a sua insatisfação com a Globo e
seus profissionais, acusando a emissora de mentiras e até ameaçando não
renovar a concessão da líder de audiência.
Em janeiro, a coluna Radar, da revista Veja, trouxe à tona as investigações
do fisco. Apesar de outras grandes emissoras, como SBT, Record, Band e
RedeTV!, terem parte de seus artistas, executivos e jornalistas contratados
como PJ, não há informações de que os profissionais dessas empresas
também tenham recebido notificações.
Nas autuações enviadas aos artistas da Globo, a Receita afirma que há um
conluio "propositado e previamente planejado para fim da prática de uma
ilicitude". Insinua existir uma associação criminosa constituída para "lesar
toda a sociedade", concluindo que a pejotização "precariza as relações de
trabalho e humanas, degrada o ambiente laboral, enfraquece direitos
trabalhistas e a própria dignidade da pessoa humana".
A Receita encaminhou as investigações ao Ministério Público Federal, sob a
alegação de crimes contra a ordem financeira. "Não bastasse o artista ser
obrigado a devolver mais do que recebeu nos últimos cinco anos, ainda
poderá ser processado criminalmente e quiçá condenado à prisão. Parece
uma novela mexicana de ficção", lamenta Antonelli, que classifica a ação
como um exemplo de "insegurança jurídica" do país.
"Os atores não são hipossuficientes [pessoa que não tem condições
financeiras para se sustentar]. Eles não estão sofrendo uma 'precarização
dos seus direitos trabalhistas', muito menos uma violação da sua 'dignidade
humana'. Não me parece crível imaginar que a Globo teria se associado a
atores para planejar a prática de uma fraude fiscal, conforme insinua a
Receita Federal", defende o tributarista.
A Globo, que nos últimos anos passou a substituir contratos de jornalistas,
executivos e apresentadores de PJ para CLT, alega que os seus contratos
são legais.
"Todas as formas de contratação praticadas pela Globo estão dentro da lei,
e todos os impostos incidentes são pagos regularmente. Assim como
qualquer empresa, a Globo e as empresas que lhe prestam serviços são
passíveis de fiscalizações, tendo garantido por lei também o direito de
questionar, em sua defesa, possíveis cobranças indevidas do fisco",
sustenta a emissora, em nota.
Procurada, a Receita Federal não se manifestou. Em agosto, o órgão
explicou à reportagem que fiscaliza a chamada "pejotização" em inúmeros
setores econômicos, mas que não poderia detalhar as ações em razão do
sigilo fiscal.
PJ x carteira assinada
Para ter um vínculo como PJ, o profissional abre uma empresa em seu
nome, e essa passa a prestar serviço para a contratante. Ao contrário do
regime com carteira assinada, esse modelo não dá direito a benefícios como
férias remuneradas, 13º salário, FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço), seguro do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e segurodesemprego.
No caso de artistas e alguns jornalistas, a vantagem de ser contratado como
uma "empresa" é a possibilidade de vincular ao contrato ganhos com
publicidade e merchandising, que são devidamente declarados.
"Alguns faturam muito mais com a publicidade nas suas redes sociais do
que na própria Globo, principalmente aqueles com milhões de seguidores,
que criam os próprios canais, atraindo mais audiência do que certos
programas de TV", alega o advogado dos artistas.
A pessoa física é taxada em até 27,5% do Imposto de Renda, além do INSS.
E a jurídica recolhe, ao todo, de 6% a 16%, dependendo da atividade e do
faturamento. O advogado tributarista destaca que, apesar da taxação sobre
a renda ser inferior, o contratado como PJ não tem os benefícios
trabalhistas e ainda arca com outros impostos empresariais para a União,
que já foram pagos ao longo dos anos.